Rotas da Utopia * Antonio Cabral Filho - Rj
Rotas da Utopia
*#*
Galeria Antonio Cabral Filho
-*-
Esta pintura acima é um presente de um grande amigo, o Carlos Roberto da Silva Machado, tecnico em segurança do trabalho, enfermeiro, artista plástico auto-didata e um habitante da utopia tanto quanto eu.
Nos idos 82-83, após o nascimento de minha filha Ana Maria, ele foi cuidar de minha esposa e dela, aliás, espontaneamente, porque eu nunca pude lhe recompensar por isso. Era um tempo em que se mudava de emprego mais do que de camisa e como bom rebelde com causa, eu vivia rondando trecho a cata de trabalho. Nessa situação, ninguém acumula FGTS, férias, PIS etc, ou seja, eu vivia mais duro do que pica de jumento no cio...
Mas o "Carlão", para os mais íntimos, nunca deixou minha esposa e minha filha sem o "acompanhamento médico" exigido por uma cirurgia de cesária e uma criança nascida prematuramente: ele passava lá em casa de manhã indo para o trabalho num estaleiro da orla de Niterói e na volta; fez isso pelo menos por uns dois meses, até minha mulher conseguir alguma autonomia.
Nessa época, nossa amizade já era sólida, devido à militância nos movimentos sociais desde as pastorais católicas, no combate à ditadura, no movimento sindical de oposição e na construção do PT. Nos identificamos rapidamente nas posições políticas, defendendo "ação direta" de massas nas relações com governos e patronato. Éramos reconhecidos por organizar piquetes e comandos de mobilização eficientes, nunca derrotados politicamente, nem vencidos na porrada, sequer pela repressão, quanto mais para a pelegada do velho sindicalismo de conciliação.
Nosso segredo era não deixar "vacilão" bichar nosso trabalho. Por exemplo, formamos Comissões de Fábrica em quase todos os estaleiros de Niterói e quando o sindicato falava em "negociar", nos gritávamos "cruzar os braços" e a peãozada parava. Foi o tempo em que mais se conquistou melhorias salariais e de condições de trabalho no setor naval.
Mas a vida de militante não é fácil. Raramente tínhamos um domingo "inteiro" com a família. E foi num desses que ele chegou em minha casa com um embrulhinho dentro de um livro de Lênin. Conversa vai conversa vem, tirou-o de dentro do livro, desembrulhou e mostrou-me..."é pra você", disse e prosseguiu "que como eu vive na rota da utopia..." . Aceitei embevecido, acrescentando "pra um Cabral, nada melhor do que caravelas...".
Acontece que a vida nos dá voltas, e numa dessas acabamos apartados por mais de trinta anos, mas nunca sem deixar um ao outro sem um telefonema ou uma felicitação festiva, até que um dia, já cobertos de cabelos brancos, ele foi trabalhar na construção de um shopping no Recreio dos Bandeirantes, logicamente exercendo a sua profissão. Telefonema pra lá e pra cá, um dia ele veio jantar conosco, em minha moradia do Camorim. Chegou todo saudoso de abraços e festejamos o reencontro. Em certo momento, ele se deparou com minha estante e ficou passeando os olhos perdidos, talvez procurando algum livro de Lênin que ele não tivesse, quando teve um sobressalto:"mas...você é demais...guardou aquele taco que eu pintei pra você..." e ficou todo feliz ao reencontrar a sua obra.
Antes de partir no dia seguinte, perguntou se eu ia continuar guardando "aquilo..." e respondi-lhe que sim e que me acompanharia para a vida toda e de meus filhos, que admiram-na com o máximo carinho. "Isso é mais do que amizade!", e abraçou-me ao despedir.
***
Marcadores: antonio cabral filho, carlos roberto da silva machado, cronica, galeria, galeria antonio cabral filho, literatura brasileira, rotas da utopia